exercício com verbalizações

exercício com verbalizações
É preciso não esquecer nada:
nem a torneira aberta nem o fogo aceso,
nem o sorriso para os infelizes nem a oração de cada instante. É preciso não esquecer de ver a nova borboleta
nem o céu de sempre.
O que é preciso é esquecer o nosso rosto,
o nosso nome, o som da nossa voz,
o ritmo do nosso pulso.
O que é preciso esquecer é o dia carregado de atos,
a idéia de recompensa e de glória.
O que é preciso é ser como se já não fôssemos,
vigiados pelos próprios olhos severos conosco, pois o resto não nos pertence.
Cecilia Meireles

terça-feira, 11 de março de 2008

Um post da Martha de Paiva


A VOCAÇÃO

Eu não entrei na trilha dos saltimbancos por acaso, nem para ser um reles fazedor de graça. Eu queria consagrar a minha vida através de um imperioso apelo vocacional. Mas as pessoas, com suas receitas de sucesso, sem nenhum escrúpulo, sem nenhuma sensibilidade, vieram me falar de mil e um palhaços geniais. Tem um que comove multidões ao aprisionar um raio de sol pra levar pra casa... Tem um que faz balões de gás dançarem alegremente ao som de seu trompete... Tem um que ridicularizou um tirano, um assassino sanguinário que queria ser o senhor absoluto do Mundo... Tem um comprido, de calça pela canela, arcado pra frente devido ao pesado fardo da indignação contra a mecanização imposta ao homem moderno...Tem o magro sonso... Tem o gordo ingênuo e bravo... Tem os que dão piruetas, saltam, dão cambalhotas, levam bofetões... Tem os que tocam música clássica em garrafas vazias penduradas num varal... Tem outro... e outro... e outro... Tem aquele pobre palhaço louco que andava pelas igrejas jogando malabares diante das imagens da Santa Maria: esse, me disseram, morreu enforcado na cruz do Senhor Jesus Cristo, numa catedral gótica... Escutei, humilde, a história de cada um desses incríveis artistas que viajavam pelas vias da loucura. Saber desses palhaços... para mim, Bobo Plin, um palhacinho de merda que começava a engatinhar nos picadeiros mal iluminados das espeluncas... saber desses palhaços só serviu para me tolher. Quanto mais eu sabia deles, mais e mais Bobo Plin, o palhaço que eu queria ser, se enroscava nas minhas entranhas.A referência esmagava minha intuição e provocava auto-censura. A comparação, maldita inimiga da igualdade, fazia dos magníficos histriões elementos inibidores da minha criatividade. Agora, Bobo Plin não quer saber da façanha destes belos palhaços. Não quer vê-los. Nem quer saber de seus bigodes, sapatões, guizos, pompons, bolas, balões e babados. A magia dos grandes artistas não pode ser ensinada; são segredos que se aprende com o coração. Essa magia se manifesta quando se resolve fazer a própria alma. Para Bobo Plin se irmanar com os grandes palhaços que luziram nos palcos e picadeiros, tem que se esquecer deles pra sempre. Não pode recolher nenhuma indicação deixada no caminho. Tem que andar sem bússola, na mais tenebrosa escuridão. Qualquer brilho, qualquer estrela, qualquer sol, qualquer referencial vira um ponto hipnótico embrutecedor. E eu quero fazer a minha alma.

Plínio Marcos

Nenhum comentário: